Capa do livro-bomba
Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense, Beatriz Kushnir hoje é diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, que tem um dos maiores acervos da imprensa alternativa que floresceu durante o regime militar. A tese que gerou o livro já foi defendida - com sucesso - no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Para realizar seu trabalho acadêmico, ela privilegiou o período do AI-5 à Constituição de 1988, mas recuou a março de 64 e à legislação censória no período republicano. O alvo foi para os jornalistas de formação e atuação, que trocaram as redações pela burocracia e fizeram parte do DCDP (Departamento de Censura de Diversões Públicas), órgão subordinado ao Ministério da Justiça, cargo de Técnicos de Censura.
Outro foco da pesquisa foram os policiais de carreira que atuaram como jornalistas, colaborando com o sistema repressivo e censor do pós-64. Para encontrar esse grupo, Beatriz pesquisou a trajetória do jornal Folha da Tarde (FT), do Grupo Folha da Manhã, de 1967 a 1984. Ela teve acesso ao Banco de Dados da Folha, ao Dedoc da Editora Abril, aos arquivos pessoais do jornalista José Silveira (Jornal do Brasil) e da jornalista Ana Maria Machado (Rádio JB).
Foram entrevistados 19 jornalistas que passaram pela FT, 11 censores (só dois autorizaram a divulgação de seus nomes) e um grupo de 26 jornalistas, entre eles Bernardo Kucinski, Mino Carta e Jorge Miranda Jordão. Feita a apuração, Beatriz deixa claro que não apenas existia uma a estreita relação naquele período entre jornalistas e policiais. Também havia uma linha de estratagemas da direção das empresas de comunicação, ao aceitarem praticar a autocensura, como "sugeria" o governo militar.
Nesse sentido, Cães de Guarda conta histórias interessantes sobre os bastidores de jornais e emissoras de televisão. Fala do funcionário que Victor Civita despachou para "treinar" censores em Brasília. Fala dos censores que foram trabalhar dentro da TV Globo. Fala dos policiais que se tornaram "jornalistas" e dos jornalistas que fizeram papel de policiais. Fala dos bastidores da Folha da Tarde, o jornal do grupo Folha que prestou serviços à repressão.
Os casos mais explícitos
O relato sobre jornalistas-policiais é particularmente interessante. A autora demonstra como esses profissionais - escrevendo nos jornais ou riscando o que não poderia ser dito ou impresso - colaboraram com o sistema autoritário. "Assim como nem todas as redações eram de esquerda, nem todos os jornalistas fizeram do ofício um ato de resistência ao arbítrio."
A historiadora conta, em uma passagem da tese, que os dez primeiros censores que estiveram em Brasília, quando da mudança da capital, eram jornalistas. Eram profissionais que foram transferidos para as redações de Brasília - e lá acumularam cargos na burocracia do Estado, situação comum à época. Mas eles preferiram ficar com apenas uma atividade.
Assim, dez jornalistas optaram pelo trabalho no Departamento de Censura, onde se ganhava mais. Dois deles escreveram um livro explicando aos censores como se deve censurar e quais os artigos que se deve cortar.
Um dos episódios destacados pela tese de Beatriz Kushnir narra a trajetória da Folha da Tarde. Segundo a tese, o jornal foi o reduto, entre 1967 e 1984, de um grupo de jornalistas colaboracionistas - os chamados "cães de guarda" -, que dirigiram a redação como uma delegacia de polícia.
Na época, a FT era chamada no meio jornalístico como o jornal de maior "tiragem", uma ironia à grande presença de 'tiras' na redação. Durante uma década e meia, o jornal ficou sob o comando da direita, e muitos dos seus jornalistas tinham cargos na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo.
Alguns fatos marcaram a redação. A prisão de Frei Betto, em 11 de novembro de 1969, foi minimizada pelo jornal, que não citou uma importante passagem em sua biografia: Frei Betto foi chefe de reportagem da Folha da Tarde. No episódio Vladimir Herzog, assassinado nos porões da Oban (Operação Bandeirante) em 25 de outubro de 1975, a FT ignorou por completo a missa ecumênica realizada na Catedral da Sé, alguns dias depois da sua morte.
Os "gansos"
Outra prática, que se estendeu a outros órgãos de imprensa, mas ganhou exemplaridade na FT, foi a de transmitir integralmente a versão do Estado para desaparecimentos e assassinatos. Caso de uma manchete de abril de 1971 que anunciava a morte do guerrilheiro Roque, em confronto com a polícia de São Paulo.
Roque era o codinome do metalúrgico Joaquim Seixas, que havia sido preso com o filho Ivan Seixas, hoje jornalista. Os dois eram militantes do MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes), e tinham sido acusados de matar o industrial Enning Boilesen, um dos financiadores da Oban. Foram presos e torturados.
Num certo dia, Ivan foi levado pelos policiais para um "volta" fora da Oban e leu em uma banca de jornal a notícia da morte do pai. Quando voltou do "passeio", ainda encontrou seu pai vivo. Joaquim Seixas viria a morrer horas depois. Os jornais do dia seguinte reproduziram friamente a nota oficial dos órgãos de repressão, mas a Folha da Tarde havia publicado a notícia um dia antes, com detalhes. Muitos atribuem à FT a legalização de mortes em tortura.
Além do caso FT, a tese mostra como redações, entre 1972 e 1975, "acatavam" os bilhetinhos do Sigab (Serviço de Informação do Gabinete), que notificavam diariamente os jornais sobre o que se podia e o que não se podia publicar. É o professor Bernardo Kucinski que lembra: "A maior parte da grande imprensa brasileira aceitou, ou se submeteu a esse pacto. Para Médici, era melhor que o próprio jornalista se autocensurasse".
As empresas escolheram seus "quadros de confiança". Por abrigar jornalistas colaboracionistas, algumas redações ficaram conhecidas como "ninhos de gansos". Os jornalistas de confiança que cobriam o Deops, por exemplo, não passavam pela revista e seguiam direto por uma entrada lateral, reservada aos policiais, apelidada "passagem dos gansos".
"Quem tem mais culpa? É o dono do jornal, é o jornalista? São circunstâncias que se dialogam", comenta Beatriz Kushnir, em entrevista ao jornal Unidade, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. "Esse termo do colaboracionismo é um termo que dói de ouvir. Isso reflete muito do país, da formação, dos processos econômicos."
Fontes: blog Vi o Mundo e jornal Unidade
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