sábado, 23 de fevereiro de 2008

O fim das ameaças à imprensa

É de se perguntar por que tardou tanto a começar - aos 19 anos e 8 meses de vigência da Constituição do Brasil democratizado - a remoção do mais tóxico dos entulhos deixados pela ditadura militar, a Lei de Imprensa, sancionada em fevereiro de 1967. Qualquer que seja a resposta, a demora é mais uma demonstração de que, no Brasil, as transformações institucionais modernizadoras nunca são prioridade dos que estão no governo. Não fosse o que a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) considerou "uma campanha coercitiva contra os meios de comunicação sem precedentes no País" - os 56 sincronizados pedidos de abertura de processo por dano moral contra dois jornais e uma agência noticiosa, subscritos por fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus -, sabe-se lá quanto tempo ainda passaria até que se pudesse comemorar o fim das ameaças à liberdade de imprensa que, por interferência de forças ocultas (mas nem tanto), continuaram pairando no ar depois de promulgada a Constituição Cidadã.

Mas o fato é que, meras 48 horas depois de o deputado Miro Teixeira, em nome do seu partido, o PDT, requerer ao Supremo Tribunal Federal (STF) a revogação da lei autoritária - no mesmo dia em que o presidente Lula defendeu em público a chicana da Universal -, o relator da matéria, ministro Carlos Ayres de Britto, concedeu liminar que suspende no todo ou em parte uma vintena dos seus 77 artigos. Mais: ele determinou a paralisação imediata dos processos abertos com base nos artigos visados, bem como de suas conseqüências eventualmente em curso.

"Imprensa e democracia", ponderou Britto, "são irmãs siamesas." E fez uma frase que irá para a história da afirmação das liberdades civis no Brasil: "O que quer que seja pode ser dito por quem quer que seja." É bem verdade que a liminar incide, entre outros, sobre dispositivos que o STF, em decisões tópicas, já considerara incompatíveis com a Carta de 1988.
A diferença é que a iniciativa de Miro Teixeira, se for acolhida pelo Supremo no julgamento do mérito ainda sem data marcada, validará a premissa de que a Constituição prevalece sobre uma lei que não só lhe é antagônica, como tampouco se justifica a qualquer título. Nas democracias em que o princípio da liberdade de expressão e o direito à informação coexistem, embora não sem tensões, com o direito à reparação por lesões à honra, imagem e intimidade, os Códigos Civil e Penal devem ser suficientes para punir as transgressões da mídia. Se a legislação comum brasileira não o for, que se a aperfeiçoe. Inadmissível, como assinalou o ministro Britto, citando o artigo 220 da Constituição, é restringir "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo".

Rigorosamente coerente com a Lei Maior, a liminar derruba as punições a jornalistas por supostos delitos de imprensa - mais severas, aliás, do que as previstas no próprio Código Penal, no capítulo dos crimes contra a honra (por exemplo, 3 anos de detenção em vez de 2, em casos de calúnia). Caem também as multas por notícias falsas, deturpadas ou ofensivas à dignidade alheia; a imunidade de altas autoridades da República à exceção da verdade; e a apreensão sumária de periódicos por subversão da ordem política e social ou por ofensa à moral e aos bons costumes.
Um dos artigos suspensos é o que permite a censura a espetáculos e diversões. Outro é o que proíbe a estrangeiros a propriedade de organizações de comunicação de massa. Em relação a ambos, a liminar cria um ruído jurídico, dado que a Constituição deles já trata (a censura é admitida e a participação estrangeira, aceita, até o limite de 30% do capital da empresa).
O essencial é que a abolição da Lei de Imprensa, se se concretizar, não tornará a mídia inimputável nem premiará a leviandade jornalística. Em contrapartida, fará cessar a "escalada de intimidação", como apontou o deputado Miro Teixeira, "que tem efeitos mais agudos contra os veículos de pequeno e médio portes, muitas vezes distantes da fiscalização popular dos grandes centros".

E, acima de tudo, consagrará a visão contemporânea das condições para o exercício legítimo da atividade informativa, enunciadas pelo ministro Ayres Britto: "A imprensa não é para ser cerceada. Não é para ser embaraçada. É para ser facilitada e agilizada."

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