Crise e canto de sereia na América Latina
Para a chamada grande imprensa, o "errático" presidente brasileiro não inspira a confiança do "republicano" Uribe. Uma pena. Cenário completamente distinto de quando estavam no poder Fernando Henrique Cardoso, Carlos Andres Peres, Menem e Fujimori. Ali, sim, a confiança era mútua e irrestrita. A análise é de Gilson Caroni Filho.
Gilson Caroni Filho
As primeiras manifestações na imprensa brasileira, após o governo colombiano ter atacado as Forças Armadas Colombianas (Farcs), em território equatoriano, revelam bem mais que um viés pró-Uribe. Explicitam, como em nenhum outro momento, um jornalismo pautado por uma agenda que repudia a integração soberana da América Latina.
Os principais colunistas dos grandes jornais se aproveitam da crise para reiterar seu condicionamento à política externa de Washington e das forças conservadoras a ela aliadas. Mais que uma mostra da doxa das redações, o que vemos nas páginas é a antecipação do que será a inserção internacional, caso a velha aliança PSDB/DEM retorne ao poder em 2010: um retrocesso que não respeitará conceitos de soberania nacional, ignorando estabilidade institucional como pressuposto para o regime democrático. Afinal, os textos são de seus escribas. E não faltam pedidos de desconstrução imediata do novo mapa político do continente.
O agir comunicativo de um jornalista se dá dentro de um espaço estruturado e tenso que Pierre Bourdieu (1930-2002) analisou a partir da noção de campo. No caso brasileiro, sempre é bom lembrar que, mantendo suas especificidades e lógica interna, o jornalismo reproduz as virtudes e os vícios da formação social em que está inserido. E, nesse ponto, os vícios ganham com folga.
A docilidade da grande imprensa no trato com forças políticas conservadoras, em especial com o consórcio neoliberal que esteve à frente do Estado por oito anos, acabou por configurar a internalização de disposições que lhe moldaram tanto a fisionomia quanto a prática. Em outras palavras: o uso do cachimbo deixou a pauta torta, como se pode observar no enfoque do noticiário, bem como na relação com autoridades políticas.
Assim, dependendo da matriz político-ideológica do ator político, o tratamento vai da rispidez, quando não agressividade, à reverência que, no limite, vira servilismo. No primeiro caso, se estabelece a estrutura discursiva direcionada para o campo democrático-popular, com destaque para os presidentes Lula, Morales,Correia e Hugo Chávez. No segundo, a mediação simbólica elaborada para representar (e legitimar) os atores do bloco liberal-conservador. A relevância disso é que estamos tratando de práxis social, de tessitura de hegemonia. E o papel da mídia é de uma centralidade inequívoca. Os trechos que transcreveremos abaixo falam por si. Mostram uma imprensa que, por atuar em campo destituído do princípio do contraditório, se locomove de forma igual e combinada.
Na edição de 4 de março de 2008, o colunista Merval Pereira escreveu:
"A postura oficial do governo brasileiro no confronto entre Colômbia e Equador foi a mais cômoda possível: condenar a invasão territorial, exigir um pedido de desculpas e um compromisso formal do governo da Colômbia de que não haverá repetição do ato de hostilidade. Mas o que fazer com a clara proteção que o governo do Equador e da Venezuela dão aos narcoguerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs)? E como impedir que o governo da Venezuela se intrometa, tomando as dores do Equador mandando tropas para a fronteira, numa clara provocação ao governo de Alvaro Uribe, a quem já vinha chamando de traidor desde os primeiros incidentes envolvendo a libertação de reféns das Farcs?"
O que seria para o jornalista do Globo uma postura governamental mais incisiva? Aquela que, operando um transformismo impensável, abrisse mão de política externa autônoma, absolutamente soberana, guiada por objetivos e interesses nacionais, para adotar um alinhamento incondicional aos desígnios de "Bush-Uribe"? Seria o caso de pedir a Merval Pereira que, em nome da verdade factual, apontasse um fato que demonstre estratégias geopolíticas comuns entre Caracas e Quito.
Concluindo, o analista do jornal da família Marinho não deixa margens para qualquer dúvida quanto ao que norteia sua reflexão de superfície:
"A esquerda tradicional" representada por Lula e Bachelet, no Chile, seria fundamental para dar estabilidade à região. Mas para isso seria preciso que o governo da Colômbia identificasse no Brasil um poder moderador independente, o que não acontece".
Em outras palavras, o "errático" presidente brasileiro não inspira a confiança do "republicano" Uribe. Uma pena. Cenário completamente distinto de quando estavam no poder Fernando Henrique Cardoso, Carlos Andres Peres, Menem e Fujimori. Ali, sim, a confiança era mútua e irrestrita. Há uma faceta cômica no "banzo" de conhecidos profissionais da imprensa.
Miriam Leitão, colega de redação de Merval, sentencia na mesma edição, em sua coluna na editoria de economia.
A Venezuela está procurando uma guerra há tempos. Armou-se para isso: só em 2006, foram US$ 3,1 bilhões (o dobro de 2005) investidos por Chávez na compra, entre outros, de 24 caças russos, navios de guerra espanhóis e cem mil fuzis AK-103. Seu alvo principal sempre foi a Colômbia."
Aqui é visível a perda de foco e sentido lógico.
Somos levados a concluir que Forças colombianas invadiram território equatoriano, seguramente com apoio logístico dos Eua, e mataram dirigentes das Farcs, que negociavam a libertação de reféns, a 1.800 metros da fronteira, porque a “Venezuela está procurando uma guerra há tempos". Seria engraçado, se não fosse cínico e calculado.
Mas o Globo não está só na cruzada. Clóvis Rossi, articulista da Folha de S.Paulo, ignorando a diferença entre a movimentação de guerrilha e ação do aparato repressivo de um Estado, não deixa por menos no intenso exercício de sofismas.
Ou, posto de outra forma: o Exército colombiano invadir território do Equador é condenável, mas as Farc adotarem o mesmo comportamento é aceitável?"
A comparação entre forças de natureza distinta não depõe apenas contra o jornalista. Rossi desnuda, de vez, por quem os sinos dobram no jornal da Barão de Limeira. Mas o melhor está por vir e, confusamente, atingirá mulheres respeitadas pela trajetória militante.
"O que chama especialmente a atenção nesses episódios é o silêncio, denso das mulheres que se dizem de esquerda. Tiveram papel relevante, no Brasil, na luta pelo respeito aos direitos humanos. Como é que silenciam agora, quando há tantas barbaridades praticadas por um grupo que se diz de esquerda, mas é apenas criminoso?"
Aqui atingimos o terreno do patético. Não há limites para o exercício da imaginação, mas o que pretende Clóvis Rossi nesse trecho. Que Iramaya Benjamin e Cecília Coimbra, entre tantas outras que se destacaram na luta contra o arbítrio, desçam em solo colombiano para uma manifestação de apoio a Uribe e seus paramilitares? É certo que estamos no continente que gerou o realismo mágico, mas não há Macondo que comporte tanta falta de sentido.
Nessa toada, o editorial do Estado de São Paulo, registra como se fosse uma certeza cartesiana:
"A incursão das forças colombianas contra um acampamento das Farc localizado no lado equatoriano da fronteira - da qual resultou a morte do Raúl Reyes, segundo homem na hierarquia da organização terrorista - constituiu, sem dúvida, uma violação da integridade territorial e da soberania do Equador. Mas o incidente não provocaria as reações que tiveram os presidentes Rafael Correa, do Equador, e Hugo Chávez, da Venezuela, se os dois não estivessem cada vez mais comprometidos com as Farc."
Ou seja, só há compromisso com a soberania quando interesses escusos norteiam as lideranças políticas. Fora isso, cabe a cegueira conveniente da diplomacia de cartolina. Do Estadão não se espera um posicionamento progressista, mas daí ao estupro da lógica vai uma distância brutal.
O Jornal do Brasil foi outro veículo a seguir a deliberada ocultação da causa determinante do conflito, responsabilizando Chávez:
"Uma vez mais o continente sul-americano sente a força desestabilizadora do presidente da Venezuela a abalar a tradição pacífica de seus povos. Os gestos, atitudes e palavras de Hugo Chávez nos últimos dias vêm atiçando a chama de um conflito entre irmãos andinos que não pode e não deve atingir o perigoso patamar de um confronto militar".
Em sua coluna de 5 de março, Merval insinua que a solidariedade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Rafael Correa, bem como a firme disposição de insistir no diálogo para uma solução pacífica para a crise diplomática teria, no fundo, uma motivação antiamericanista.
"A insistência do presidente Lula em ressaltar a invasão territorial do Equador pela operação colombiana, e o pedido de criação de uma comissão para investigar o que aconteceu, podem estar relacionados à desconfiança de que as forças americanas que estão combatendo o tráfico de drogas na Colômbia estariam interferindo nos negócios internos da região, o que caracterizaria a concretização de uma das grandes preocupações dos antiamericanos do governo Lula"
Mas o que se pode concluir do discurso jornalístico? Assim como já pediu a Lula, em tempos recentes, que se descolasse do PT em troca de uma falsa trégua, agora solicita ao presidente-operário que se "autonomize” do contexto histórico latino-americano.
Que ignore que sua sorte está ligada ao destino dos outros governos de esquerda da região. Pedem-lhe um pragmatismo que nada mais é que canto de sereia. O norte da bússola midiática aponta para trás. Para uma configuração de vice-reinados e Metrópoles benevolentes. Esse é o caminho sonhado por tucanos de alta plumagem.
Para o governo Lula, condenar Uribe é tão imperativo quanto buscar uma solução negociada. É mais um momento de combinar, na medida exata, cautela e ousadia. Algo distante do que pregam colunas e editoriais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário